Vou pegar emprestado um trecho do excelente livro “Conversas Difíceis”, de Doug Stone, Bruce Patton e Sheila Heen, do Programa de Negociação da Universidade de Harvard. É um simples exemplo para depois entrarmos mais a fundo nessa questão.
“Considere a história de Lori e Leo, que estão juntos há dois anos e têm brigas constantes, dolorosas para ambos. O casal estava em festa de amigos, e Lori ia pegar mais uma bola de sorvete quando Leo disse: “Lori, por que você não evita o sorvete?” Lori, que luta contra seu peso, lançou um olhar fulminante para Leo, e os dois se evitaram por um tempo. Nesta mesma noite, mais tarde, as coisas pioraram:
LORI: Realmente fiquei magoada na festa, pelo modo como você me tratou na frente dos nossos amigos.
LEO: O modo como eu tratei? Do que você está falando?
LORI: Sobre o sorvete. Você agiu como se fosse meu pai. Você tem a necessidade de me controlar ou de me humilhar.
LEO: Eu não queria magoá-la. Você disse que estava de dieta, e eu só quis ajudá-la a se manter nela. Você fica sempre na defensiva. Acha que eu só ataco, mesmo quando quero ajudar.
LORI: Ajudar me humilhando na frente de amigos? É essa a sua definição de ajuda?
LEO: Sabe, eu nunca consigo vencer você. Se digo alguma coisa, você acha que estou querendo humilhar, se não digo, você me pergunta por que a deixei comer tanto. Já estou farto disso. Às vezes me pergunto se você não começa essas brigas de propósito.
O diálogo deixou tanto Lori quanto Leo magoados, zangados e incompreendidos. E, o que é pior, é uma conversa que tem se repetido. Eles entraram em uma guerra clássica de intenções: Lori acusa Leo de magoá-la de propósito; Leo nega. Eles se envolveram em um círculo que não compreendem e de onde não sabem como sair.”
A primeira vista, um exemplo corriqueiro de briga de casal. Acredito que pode ser aplicado à diversas situações, e não apenas em um relacionamento amoroso. De modo geral, trata-se de um caso em que um lado se magoa com a posição do outro, insinua suas intenções e o outro lado se defende, também insinuando intenções e demonstrando pouca empatia na situação. Enfim, um caso de um conflito extremamente comum, seja no ambiente profissional quanto no pessoal.
Vejo dois erros também comuns e que ajudam a alimentar o conflito, um de cada lado. Geralmente os cometemos de forma automática, pois numa situação tensa nosso instinto natural é de defesa, e nossa atitude inicial é a reação. Não criamos empatia, não ajudamos o outro, e por mais paradoxal que pareça, pensando apenas em si nós nos prejudicamos.
Bom, vamos aos pontos!
Quando Lori afirma que Leo “tem a necessidade de controlar ou humilhar”, ela está afirmando que a intenção de Leo é controlar ou humilhar, ou seja, que ela sabe a intenção dele.
O fato é que, ao mesmo tempo que nos importamos com a intenção do outro, simplesmente não conseguimos acessá-la. Nossa dedução sobre a intenção do outro é um mero chute, e como qualquer chute, a chance de estar errado é muito grande. E é o que geralmente acontece.
O grande problema é que muitas vezes deduzimos a intenção da outra pessoa baseado no impacto que a ação dela gerou. Se ficamos chateados, o outro quis nos deixar chateado. Se somos ignorados, o outro quis nos ignorar. Apesar de errada, essa dedução tem base pela forte emoção negativa que toma conta do momento.
E por que isso está errado? É simples: um mesmo impacto pode ser gerado por mais de uma intenção, e como não conseguimos descobrir o que está na mente da outra pessoa, não temos dados suficientes para restringir as possibilidades.
Isso quer dizer que as más intenções não existem? Claro que existem. Há casos em que alguém vai sim querer te magoar ou fazer algum outro mal. Porém esses casos são mais raros do que acreditamos, e infelizmente sem escutar a própria pessoa, não conseguiremos saber a real intenção.
Uma das consequências ruins deste primeiro erro é o julgamento sobre a outra pessoa e a consequente piora do próprio sentimento. Ao deduzir más intenções, você acaba julgando aquela pessoa de alguma maneira — mal caráter, manipulador, difícil, entre outros — fazendo com que haja maior afastamento (baseado na premissa errada, que foi a dedução da intenção) e acaba ficando pior, mais magoado, com mais raiva.
Outra consequência é a automática defesa do outro. Ao acusar, o outro vai reagir tentando se proteger. No exemplo, ao expressar sua mágoa, Lori passou duas mensagens: que sabe o que Leo pensa (intenção) e também que está magoada. Leo, naturalmente, focou-se na primeira mensagem e se defendeu. E a mágoa, que seria o sentimento a ser trabalhado, foi esquecido.
Um último detalhe interessante sobre este erro é que em geral assumimos que a intenção do outro é ruim, porém a nossa é boa. Se um colega de trabalho faz uma crítica sobre você em uma reunião lotada, você assume que ele quer te passar a rasteira. No entanto, se você faz um “comentário construtivo” sobre ele na mesma reunião, tem interesse no bem do projeto. Um pouco controverso…
Apenas um adendo: Falando no mundo corporativo, esse tipo de interpretação acontece através de e-mails e mensagens também. Se numa conversa pessoal já não conseguimos saber a intenção do outro, imagina em um texto? Há informações demais faltando (expressão do outro, tom de voz, escolha de palavras) para podermos deduzir qualquer coisa.
Quando Lori fala sobre sua mágoa e supõe a intenção de Leo, ele se coloca na defensiva. Ignora o fato de Lori estar magoada para justificar que sua intenção não era aquela. Leo viu a mensagem literalmente, e desse modo não escutou as reais necessidades dela.
Apesar de Lori ter dito que ele pretendia magoá-la, não foi exatamente isso o que ela quis dizer. Ela tem necessidade de ser ouvida, e sente que ele não se importa com ela como deveria. Ao se defender — Não! Eu tive boas intenções! -, ele passa a mensagem que pouco se importa com ela, só quer saber de si mesmo.
Isso acontece conosco com muita frequência, e podemos perceber mesmo sem estudar a fundo que talvez essa autodefesa não seja uma boa solução para o conflito.
A questão é que o núcleo dessa estrutura está invertido. A situação não é amenizada e a outra pessoa não fica mais feliz se justificarmos que nossa intenção é boa. A melhora virá com o entendimento do sentimento do outro, escutar de verdade as necessidades reais da pessoa depois daquela situação.
Pode parecer ridículo se pensarmos: “Ah, então se você não teve a intenção de me magoar, tudo bem falar para eu parar de comer e me deixar triste!”. Realmente é difícil que a solução seja mesmo essa.
Sentimos a necessidade de nos defender após uma acusação (geralmente) falsa. Mas vale a reflexão: Será mesmo que me defender agora é a melhor saída para o problema?
Muitas vezes é útil esclarecer as intenções, porém o timing em que isso é feito importa. Se for feito no início da conversa, talvez falte entender realmente os sentimentos e necessidades da outra parte para ajudar no restante do diálogo.
Acredito que estar ciente da situação é um grande passo. Entender a diferença entre intenção e impacto, acreditar que realmente não conseguimos adivinhar as intenções do outro, e escutar de verdade o que o outro está sentindo por trás de uma acusação vão fazer diferença.
Outro ponto para pensar é que não há apenas dois tipos de intenções: boas e más. A complexidade das motivações dos seres humanos é muito maior do que isso. É maior do que isso para você, que sabe que não é sempre “bom” ou “mau”, e também é para a outra pessoa.
Primeiro: É importante tentar dissociar impacto de intenção. Lori, por exemplo, deve saber diferenciar “fiquei magoada” de “ele quis me magoar”. Um exercício para isso é tentar descobrir o que realmente ocorreu, a ação em si, e não o que o outro pensou ou quis fazer.
Em seguida, ficar ciente do sentimento que tomou. Quem fica magoado, não escolheu ficar magoado naquele momento, mas consegue ter ciência do sentimento e a AÇÃO que o causou — não a intenção.
Lori poderia ter dito: “Quando você falou aquilo, eu realmente fiquei magoada e me senti constrangida, pois estou lutando contra meu peso e preciso de apoio”. Se Leo não foi mal intencionado, provavelmente sua resposta será ajudar Lori com seu problema.
Segundo: Ouça os sentimentos. Duas mensagens foram passadas: “você teve más intenções” e “estou magoada”. A mensagem que importa é a segunda. A primeira pode ser entendida como um sentimento transbordando.
Se você entender isso, poderá ignorar o ataque, e ouvir o que a outra pessoa necessita, que é um modo de lidar com a mágoa, e confiança. Fazer isso é desafiador, pois estamos acostumados a nos defender, porém cada vez que conseguir será uma grande vitória.
Neste exemplo, Leo poderia ter respondido: “Você ficou magoada porque se sentiu constrangida?”, “Posso ver que você ficou realmente triste”, “Me diz o que você espera de mim numa situação dessa…”, e por aí vai.
Entender e aplicar essa dissociação de impacto e intenção dentro de um diálogo pode gerar resultados inacreditáveis. É uma mudança sutil e muito difícil de realizar. E como boa parte das coisas boas da vida, para ficar bom você deve praticar bastante.
Quando se perceber julgando a intenção do outro, tente parar para refletir. Quando estiver em uma conversa difícil e for atacado, tente sentir o que o outro realmente necessita.
Mais do que ser bom para o outro, esse comportamento é ótimo para você e seus relacionamentos, quaisquer sejam eles.
Gustavo Habib possui Educação Executiva em Negociação e Liderança pela Universidade de Harvard e é Instrutor de Mindfuness em certificação pelo Centro Mente Aberta - UNIFESP. É co-fundador da bLivn e possivelmente está meditando agora.